Revista Sobrado
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Tenille Bezerra: “Seu Mateus Aleluia é um pensador como poucos que temos hoje em dia no mundo”

Depois de uma pré-estreia movimentada em janeiro deste ano, no Cine Glauber Rocha, o documentário Aleluia – O Canto Infinito do Tincoã, sobre o cantor e compositor Mateus Aleluia, estreia de uma forma completamente diferente do que foi visto no começo do ano: agora com todo mundo em casa, assistindo na telinha da TV. A estreia acontece neste sábado (22), às 20h, na TVE Bahia. Uma reprise está programada para o próximo domingo (30), às 17h.

O longa-metragem, dirigido por Tenille Bezerra, aborda um período mais recente da vida de Seu Mateus, que ganhou fama nos anos 1960, com o grupo Os Tincoãs. No documentário, ela tenta decifrar o olhar e o pensamento poético do cantor, dando um destaque para o homem pensador, passeando por Luanda e Cachoeira (o lugar onde ele viveu por 20 anos e o lugar onde ele nasceu, respectivamente), e criando um mapa de memórias que mistura o início da carreira de Aleluia com sua produção mais recente, Olorum, lançado no final de julho deste ano.

A diretora Tenille Bezerra, nascida em Valença, no baixo-sul baiano, e que há quase 20 anos atua com o audiovisual, conversou com a Sobrado sobre sua estreia como diretora solo de um longa-metragem, sua relação com o músico, a ancestralidade presente no filme e os quase 10 anos de produção do documentário.

Sobrado: Aleluia, o canto infinito do Tincoã é seu primeiro trabalho solo na direção de um longa-metragem. De onde veio a ideia de fazer um documentário?
TB: Esse projeto tem uma estrada. Desde que tive a ideia de fazer o documentário, já se foram nove anos. Eu não conhecia na época o Seu Mateus e surgiu, no primeiro momento, o desejo de fazer um documentário sobre o Tincoãs. E, na época, eu comecei a estruturar isso em torno de um projeto, enquanto pensava em outros projetos também, mas esse foi o que conseguiu financiamento antes. Não foi uma decisão de ser esse o primeiro projeto, apesar de que em um determinado momento eu estava envolvida com outros trabalhos e decidi que ia priorizar esse filme. Deixei as outras coisas de lado e passei a me concentrar nele, que foi o momento em que consegui o financiamento para produção. Primeiro, consegui um financiamento para pesquisa, que viabilizou uma ida para Luanda com ele, e aí, em 2016, consegui um financiamento para produção. E aí isso passou a ser minha prioridade e agora está no mundo.

S: E como foi o seu primeiro contato com Seu Mateus Aleluia?
TB: Eu levei um ano para falar com ele sobre a ideia do documentário. Era impossível para mim, como admiradora do trabalho dele, chegar sem conhecer e dizer “vamos fazer um trabalho?”, mas um dia criei coragem, consegui o telefone dele, telefonei e combinamos um encontro. Disse que queria fazer uma proposta de trabalho, falei da ideia do documentário. Desde o início era a trajetória dos Tincoãs a partir do olhar dele, que na minha visão, até hoje não é só quem sustenta, mantém esse legado, mas é quem o atualiza. Ele segue produzindo, segue trabalhando. Quando propus, ele topou. Curioso que ano depois ele me falou que outras pessoas já tinham proposto isso a ele, fazer um documentário, mas que ele nunca tinha aceitado. Para a minha sorte ele aceitou. No momento em que ele aceitou, nós não nos conhecíamos, a gente começou um processo de convivência enquanto eu pesquisava e ia entendendo mais essa relação da época dos Tincoãs, do momento atual da vida dele, e a gente começou a se aproximar e essa aproximação dura até hoje. A gente é muito parceiro, muito próximo. Mesmo sem o financiamento para produzir o documentário, eu comecei a filmar ele. Ele ia para Cachoeira, eu ia com ele e o filmava lá. Eu fui também, através do próprio exercício de filmagem, compreendendo ele enquanto personagem. Seu Mateus é um artista de palco, é um músico, ele tem completo controle desse momento de exposição, de subir num palco, se colocar. Eu notava que todas as formas, as entrevistas e as coisas que tinham com ele, ele sempre buscava esse lugar do artista. E eu comecei a me interessar mais pelos outros momentos, onde ele estava mais descontraído, mais a vontade. E o filme acabou sendo construído dessa forma, numa relação de cumplicidade. Essa possibilidade de eu estar com equipamentos, de estar sozinha com ele, sem uma mediação de equipe, me permitiu uma história a vontade, que é muito presente no filme. Quando você assiste o filme, você percebe que as coisas que ele fala, as coisas que ele revela, ele está revelando porque está completamente à vontade para mostrar. Isso é muito bonito, porque é filosofia pura.

S: Seu Mateus é um personagem muito importante para a história da Bahia e da música baiana. Você sentiu, mesmo no começo quando ainda não o conhecia, algum receio de estar na presença e na intimidade dele?
TB: Não, no primeiro ou no nosso segundo encontro isso já desapareceu. Ele abraçou a ideia e abriu todas as portas, criou uma relação de confiança. Até hoje eu sou profunda admiradora e fã do trabalho dele, mas a gente conseguiu construir uma horizontalidade desde o início. Inclusive, a ideia inicial do documentário musical foi abrindo espaço para revelação de um outro lado dele, que é o lado que inspira a música, e não só a música, mas a forma como ele se coloca no mundo, que é essa faceta dele de pensador. Eu realmente acredito que Seu Mateus é um pensador como poucos que temos hoje em dia no mundo, um pensador com a liberdade de pensamento. Ele tem uma condição absolutamente livre, uma abertura para a vida que é realmente encantadora. Eu brinco que o filme é uma paisagem existencial, é o imaginário dele. Onde entra o Candomblé, a relação da diáspora do Brasil com a Angola — porque não é a África, é a Angola. Essa relação de horizontalidade que ele permitiu, foi fundamental para isso, para que eu pudesse olhar para ele dessa maneira e retratar isso no filme.

S: Você menciona essa questão da ancestralidade e religiosidade, como foi estar nesses momentos tão importantes e particulares dele?
TB: Quando eu comecei a elaborar o projeto, uma das questões mais importantes para mim era ir para Luanda com ele para entender porque quando eles foram fazer um show, enquanto Tincoãs, não voltaram mais. A história deles é essa, né? Eles vão com uma delegação de artistas, num evento que celebrava a proximidade do Brasil e Angola, vão fazer um show, ficariam uma semana, mas todo mundo volta e eles não voltam. Eles ficam lá e ficam por 20 anos constituindo uma vida. Daqui, a gente olha para a África a mitificar. A gente tem um imaginário mítico, é uma ancestralidade a ser reconquistada, e eu queria muito entender, mas achava que era isso que iria encontrar. E não é exatamente isso. Angola tem uma história mítica, como muitos países da África, mas tem uma história com a colonização. Lá, no caso de Angola, quando o país consegue uma independência de Portugal, se estabelece um governo comunista, e hoje em dia já se olha dizendo que não deu tão certo, mas naquele momento para o mundo era uma grande experiência, mais um país comunista, mais uma possibilidade de confronto com o capitalismo que tomava conta do mundo inteiro. A relação religiosa de lá, muito por conta de como as coisas acontecem socialmente, elas não são vividas da mesma forma que são vividas aqui. Então essa ideia que temos de ancestralidade, do próprio Candomblé, lá é completamente diferente. O que eu quero dizer, é que viver com ele, esse processo de olhar para a ancestralidade, poder ter ele como guia nesse mergulho em relação a isso, foi ter uma oportunidade de compreender que a relação se estabelece pela força com os Orixás, Inquices, Voduns, com esse universo mítico e não necessariamente com as formas. Do próprio ponto de vista da religiosidade, o próprio Tincoãs cantavam muito mais músicas de Umbanda. É interessante porque eles são vistos e associados muito a uma coisa de ancestralidade africana, mas muitas cantigas que eles cantam são da Umbanda, que é esse sincretismo todo que marca a experiência do Brasil, onde entram as referências indígenas, afro-indígenas, como o catimbó. O Brasil é essa experiência de encontro de tudo isso. E o que eu pude viver com ele foi um olhar para tudo isso sem dogmas, porque a vivência dele em Angola fez com que os dogmas que ele levava daqui caíssem por terra, ao mesmo tempo em que ele pôde se encontrar com, digamos, a força real dessas energias todas que a gente cultua no Candomblé.

S: Esse projeto, como você mencionou, durou nove anos desde a ideia inicial até a finalização da montagem. Todo esse processo é um período bastante longo. Em algum momento você chegou a pensar que o filme poderia acabar antes, que as filmagens pudessem ser finalizadas em algum momento ou você sempre achou que poderiam ir um pouco mais mesmo depois de ter tudo finalizado?
TB: O processo de um documentário a depender do tema e da forma, pode ser longo. Mas a partir do momento que o processo se deu comigo acompanhando ele em shows, em viagens e filmando ele, íamos pra Cachoeira, íamos pro terreiro… Isso poderia ser infinito, né? Poderia ficar fazendo isso durante muito tempo. E de certa maneira, eu continuo fazendo isso. Ele brinca que eu sou a biógrafa dele. Todas as viagens que ele fazia, eu viajava com ele. Mas teve um momento que veio essa coisa do recorte mesmo, da direção, percebi que já tinha tudo o que eu precisava pra contar essa história. Eu tenho bastante material e sempre tive consciência de que tinha um material muito diverso. O mais difícil, e o que demorou mais, foi conseguir encontrar a forma de contar essa história. Essa coisa do documentário tradicional musical já tinha caído há muito tempo, eu já entendia que isso não daria conta de falar da profundidade que ele tem, e no final das contas, da música dele.

S: Para você, o que era mais importante de mostrar nesse documentário?
TB: O filme se estrutura na gravação do segundo disco, desse processo de composição ele vai para vários lugares. Mas a relação dele com a arte, nesse sentido ela é muito ligada ao que seria uma ancestralidade da própria arte, que é a arte como algo não dissociada da vida, o início da arte está profundamente relacionada aos cultos, a ritos, ela tem toda uma implicação na vida da pessoa, da comunidade. Essas músicas do Seu Mateus têm essa força, elas estão ligadas à expressão da experiência dele de vida. Eu ficava buscando, tentando encontrar uma forma de transportar essa história dele que dialogasse com esse universo sensível dele. Eu me dei conta que fazer um documentário de fatos, que elencasse cronologicamente coisas como ‘Mateus nasceu aqui’ qualquer pessoa poderia fazer. Tendo uma boa pesquisa e acesso a materiais, você conta essa história. Mas, falar desse universo sensível que é tão íntimo e que ele praticamente não revela, pois como ele mesmo fala no início do filme, ele é “desconfiado como todo povo de Cachoeira”. Falar desse universo mais íntimo, mais sensível, talvez uma outra pessoa não pudesse fazer porque ele é essa pessoa que tem as reservas dele. Isso foi o que levei mais tempo, levei uns dois anos procurando isso. Em 2018 eu encontrei esse caminho. O filme não é cronológico, ele não obedece a esse formato histórico de encadeamento de fatos, ele segue uma outra lógica, uma lógica cíclica, as coisas se atravessam, então ele está em Cachoeira e vai para Luanda na mesma hora, e eu não me preocupo em dizer que é Cachoeira e que é Luanda, a gente percebe porque o sotaque das pessoas é diferente. Apesar das paisagens serem muito parecidas, é incrível como poderia ser a mesma cidade tranquilamente, se não fosse alguém falando e você percebendo o sotaque diferente. O filme se desloca dentro de um imaginário dele. A nossa memória é nosso imaginário, ela mistura todos os tempos, a gente está aqui e lembra de uma coisa de 20 anos atrás. O filme segue esse tipo de estrutura que é como ele próprio ordena a história da vida dele. Ele conta as coisas e as temporalidades estão todas juntas.

S: Ainda nessa questão do tempo de produção, como foi manter a equipe nesse longo período? Houveram mudanças, por exemplo, na equipe de som, fotografia?
TB: Eu vinha filmando ele sozinha, com alguns parceiros, mas no máximo uma outra pessoa. Quando nós recebemos o financiamento, montamos uma estrutura de produção. Eu peguei todo esse material que eu tinha filmado nos anos anteriores, decupei e vi o que eu tinha e planeja o que eu precisava filmar. Então, montamos uma estrutura de uma equipe de filmagem reduzida com dois diretores de fotografia, uma técnica de som e a gente filmou durante nove dias. Filmamos em Cachoeira, filmamos em Salvador, eu já tinha filmado em Luanda, então esse foi o momento da equipe. O restante todo do processo era mesmo eu, uma equipe de produção em material de arquivo. Porque pesquisa, licenciamento, tudo isso demanda um trabalho. O restante do processo sou eu mesmo, faço câmera e som.

S: Você teve um material amplo além do que produziram, que é esse material de arquivo que vocês levantaram. Como foi o processo de montagem do documentário?
TB: Foi bem longo. Dos processos criativos, acho que foi o mais longo. No início, para começar o processo, eu chamei uma montadora, a Iris de Oliveira. É uma montadora baiana, uma montadora super talentosa, e eu entreguei o material pra ela. Eu tinha filmado, eu tinha vivido toda aquela situação com ele, então havia um envolvimento natural com o material e eu queria estabelecer o diálogo com uma pessoa de montagem a partir de um outro olhar. Iris assistiu todo o material, decupou e começamos o processo de montagem juntas. Montamos o primeiro corte, que é o primeiro desenho do filme, e trabalhamos juntas até o terceiro corte. Aí, em relação à produção, a gente já não tinha mais dinheiro pra Iris continuar, o orçamento do filme foi pequeno. Já não tinha mais dinheiro e eu continuei montando sozinha, porque era um filme meu, aquela paixão, aquela coisa, e eu continuei montando por mais uns seis meses. Fui depurando corte e terminei sozinha.

S: Além de estrear na TVE, alguns meses após a pré-estreia nos cinemas, em breve o filme vai estar concorrendo na competição principal do In-Edit Brasil. Como é o sentimento de estar nestas três plataformas (cinema, TV e festival – dessa vez on-line)?
TB:É muito novo, né? Como eu tenho essa estrada no cinema, já fui para muitos festivais e é curioso dessa perspectiva agora de não ter um espaço de troca. Porque tem umas coisas nos bons festivais de cinema que é, além do calor ali da exibição, da sala de cinema, em geral são promovidos debates. Então são espaços maravilhosos para desdobrar o filme. Para mim está sendo muito novo e surpreendente, e nesse sentido eu acho que eu guardo no coração a exibição que teve em janeiro, que foi uma pré-estreia que a gente conseguiu reunir bastante gente. O filme foi feito pro cinema, então quando ele é exibido no cinema, com todas as condições técnicas adequadas, é muito emocionante. Eu tô um pouco apreensiva porque a TV reduz no ponto de vista sonoro. Por exemplo, o filme tem uma camada narrativa importante que é no som. Ele não tem um som tradicional. Inclusive, o trabalho de edição de som, a gente chamou de paisagem sonora porque ele tem cenas em que toda narrativa se constrói através do som. Na TV, o que eram cinco canais vão virar dois. Mas o importante é que as pessoas vão poder assistir e isso já é bom demais. No In-Edit a mesma coisa, só que no computador. Eu fico imaginando o que eu vou fazer na hora… Eu vou assistir também. Talvez num bate-papo com os amigos, porque é muito solitário.

S: Vocês pensam em lançar comercialmente nos cinemas depois que os cinemas reabrirem?
TB: Sim. Essa escolha de fazer um pré licenciamento com a TVE, ela vinha de um pensamento antigo meu no cinema que é o seguinte: os filmes que são financiados com recursos públicos, eles têm que chegar pra população, eles têm que estar acessíveis, as pessoas têm que assistir, porque foram elas que financiaram. Esse circuito de festivais, ele é muito importante dentro do universo do cinema, ele legitima os filmes. Você ganha chancelas e etc., mas do ponto de vista do acesso, eles são muito restritos, são poucas pessoas que circulam nesses espaços. Então meu interesse é disponibilizar ele logo nas TVs, no VOD (video-on-demand) e plataformas como Netflix, que hoje em dia é a grande forma pela qual as pessoas acessam os conteúdos. O meu interesse principal é que o filme chegue até o máximo de pessoas possíveis, porque eu acho que realmente Seu Mateus tem algo com o trabalho dele, com a presença dele, a nos dizer que talvez possa nos orientar em relação a essa caminhada que, inclusive, tem sido tortuosa