Revista Sobrado
Foto: Victória Nasck / Divulgação

Zeferina: “A periferia, a quebrada, é o quilombo de resistência. É lá que eu quero chegar”

O ditado que diz que “andorinha só não faz verão” se enlaça às diversas fases da vida de Zeferina, cantora, compositora e poetisa da Zona Sul paulista. A mensagem do dito popular pode ser escutada também em cada um dos pensamentos que a artista expõe. Em concordância a esse preceito, ela lançou uma campanha de financiamento coletivo para o lançamento do seu primeiro livro, Rio Vermelho, que traz poesias escritas por ela desde a infância até a atualidade. A obra, centrada nas faces de menina, mulher, mãe solo, candomblecista, casada, divorciada e LGBT, deseja valorizar o poder de transformação pessoal e social por meio dos afetos, a partir da perspectiva da mulher negra.

Zeferina estreou na literatura na antologia Sarau Preto no Branco, em 2014. Compõe mais seis antologias publicadas: Sambas Escritos, Sarau Verso em Versos, Pilar: Futuro presente – Uma antologia para Tula, Sarau das Pretas, Escritas Femininas em Primeira Pessoa e Salve Kebrada Favelas e Aldeias. Duas canções suas podem ser escutadas nas plataformas digitais: Mistério de Nanã e São Jorge Guerreiro. Também é uma das vozes do grupo Ilú Obá De Min e do grupo Obanajé.

Em entrevista à Sobrado, ela conta um pouco de sua história pessoal e sobre o processo de produção da obra, exalta o poder de realização da coletividade, comenta a vivência do amor por parte da população negra e defende a arte como lugar de libertação para a construção e o reconhecimento da identidade.

Sobrado: Zeferina, como começou a sua história com a arte?
Zeferina: Estou profissionalmente na música desde 2006, mas a arte vem aflorando dentro de mim desde a infância. Dentro do meu silêncio enquanto criança negra, da periferia de São Paulo, passando por diversos processos, a travessia de formação de quem nós somos dentro dessa sociedade. Enquanto criança eu tive esse processo de entender quem eu era na sociedade enquanto mulher e negra. Para chegar a isso, a essa consciência, a arte veio através do meu silenciamento, eu era uma criança muito quieta, tive que lidar com as questões, as repressões que tive. Comecei a cantar, a partir dos oito anos comecei a compor, mas eu não sabia que era composição, eu pegava aqueles gravadores grandes e as fitas do meu pai, gravava em cima da voz que tava ali, começava a falar sobre a natureza, sobre os animais, sobre tudo que eu via. Eu era uma criança que transformava todo aquele silêncio, aquela dor, em arte. Depois a escrita veio, aos dez anos comecei a escrever mesmo a minha história. E esse exercício, desde então, se mantém até os dias de hoje. Esse é o poder da palavra: de transcender à sua máxima potência.

S: Como se deu o encontro dessa produção sua enquanto criança e adolescente com a possibilidade de se tornar um ofício?
Z: A palavra começou a tomar conta da minha vida a partir desse ano de 2006, depois de eu frequentar saraus da Zona Sul de São Paulo, frequentar alguns locais de cultura, casas de cultura, já com uma formação de ideologias, de militância, sabendo que eu sou uma formadora de opiniões e que eu posso exercer esse poder que é necessário pro mundo, uma troca. A melodia veio nessas poesias, comecei a recitar, cantar, fazer parte de várias bandas, coletivos, formei a minha própria banda também e fomos tendo reconhecimento regional primeiro no meio do samba e uma das minhas músicas foi agraciada no Samba da Vela em 2016. Contei a história desde a infância porque acho que a arte é assim: primeiro é para a gente, depois é pro outro.

S: Você nasceu e mora em São Paulo, qual o motivo da escolha da Bahia como um dos cenários do livro?
Z: Sim, sou nascida e criada em São Paulo, que eu falo que é terra de Exu, a terra dos caminhos, mas a minha semente ancestral vem da Bahia e essa conexão é o que me forma enquanto pessoa. Eu estava aí esse último mês, trabalhando, fazendo alguns projetos, dentro dos cuidados necessários. Uma vez por ano eu vou à Bahia, sou levada pelo sagrado, de alguma forma ou outra acabo indo no dia de Iemanjá. Vou fazer esse agrado, esse gesto de reverência aos ancestrais, sempre no Rio Vermelho. Esse ano, fiz as minhas obrigações em alto mar, como a maioria das pessoas que conseguiram fazer no dia dois. Mas dia de orixá é todo dia, então, eu fui lá depois fazer o que eu faço todos os anos, que é dar um agrado pra Iemanjá, no Rio Vermelho, porque isso pra mim é muito simbólico, diz muito sobre mim, sobre os meus processos de transformação. Deixo ir uma persona, uma Zeferina nas águas para receber a próxima persona Zeferina. Então é o processo curativo que essas águas me trazem. Esse livro traz poesias, como eu falei, desde a minha infância. São escritos que estão guardados há muitos anos, até os dias atuais. Então, fala sobre Zeferina menina, adolescente, moça, eu enquanto militante, mulher casada heterossexual. Depois, a minha transformação em LGBT. Hoje me afirmo livreGBT, que é o termo que eu gosto de usar, porque é a liberdade de ser o que eu quiser ser e experienciar o que eu bem entender.

S: O título da obra refere-se, então, a esse local importante em sua vida?
Z: Também. Ele tem dois motivos, um dos motivos é esse, o outro é trazer a presença do poder de transformação das águas. A transformação do vermelho do sangue, do vermelho barro, do barro vermelho. Nanã é barro, Oxum é rio. E é isso que nutre a gente enquanto ser mulher, também é o vermelho do sangue que escorre de nossas pernas todo mês. A gente se renova a todo ciclo. Sei também a história do Rio Vermelho daí, quantos corpos negros tem no fundo desse oceano.

S: Como foi para você, que é uma artista com um trabalho de grupo muito presente, construir um livro em meio a uma quarentena?
Z: A quarentena é um processo que o mundo tá passando, o mundo inteiro está sendo jogado dentro de um útero e dentro desse útero de mãe, acredito que a gente tá passando por um processo de limpeza, de renovação muito grande, muito forte. Nós estamos prestes a nascer, esse processo de idas e vindas eu enxergo como um nascimento, a gente tá começando a ser parido novamente e quando a gente parir, a gente vai voltar a engatinhar. Vamos ter que tomar muito cuidado, redobrado, porque toda vez que a gente vacilar, a natureza vai botar a gente de novo onde a gente está agora. Então, nesse processo, dentro da quarentena, eu tomei o pulso da coragem de botar a minha verdade no mundo. Peguei todos esses escritos e fiz o livro. Fui convidando as pessoas, porque nada a gente faz sozinho. Foi um processo de coragem assumir esse livro e vem sendo ainda, mas a cada mão dada eu alimento e sigo acreditando.

Estou de mãos dadas nesse livro com a Cristiane Sobral, que é uma mulher muito potente, poeta de Brasília. E temos também Priscila Obaci que é tão potente quanto, que é uma escritora, mãe solo de duas crianças, candomblecista, é uma das referências aqui de São Paulo, da quebrada da Zona Sul. E nada a gente faz sem reverenciar e pedir licença pro mais velho, eu aprendi dessa forma no barracão onde eu estou iniciada e me mantenho com isso em todos os projetos da minha vida. Então, nós temos aí também o agraciamento e a presença de Conceição Evaristo, contribuindo com o seu axé, com o seu cheiro, vamos dizer assim.

S: Como você espera que este livro, que conta de travessias suas, reverbere em seus leitores, sobretudo as mulheres?
Z: É um livro íntimo, mas provavelmente alguma poesia desse livro vai servir de cura para alguém, assim como foi uma cura pra mim. Nós, enquanto pessoas negras, não aprendemos a amar. Como diria Bell Hooks, a gente foi privado desse aprendizado. O que é o amor? Que a gente tanto almeja sentir, porque nós somos criados de maneira tão brusca. Gosto muito do Vivendo de Amor, me reconheço muito nesses escritos dela. Fora outras referências que eu tenho, como a própria Conceição, a própria Cristiane Sobral e outras tantas, grandes escritoras aqui de São Paulo que eu me reconheço. Mas eu fico cada vez mais pensando nesse amor que cura. O que é o amor pra população negra, para uma mulher negra? Qual é o amor que a gente deve acreditar? Primeiro, é o amor a si próprio. E essa é uma relação que a gente tem que nutrir constantemente com a gente mesmo. Cuidar do outro não é pegar as sombras do outro ou os problemas do outro para si. A mulher passa muito por esse processo, porque a gente foi educada pra isso. A mulher que foi idealizada é a mulher que tem que servir e não tem palavra, não pode trabalhar e receber o mesmo salário que os homens, é a mulher que não pode estar mostrando ou expondo o seu corpo, porque isso já é um convite pra sofrer algum abuso. É uma mulher que não pode estar dançando livremente com o seu corpo, porque já é outro convite, assim como as mulheres trans também, que passam por esse processo, de forma até mais árdua. Então, o que é ser mulher? Que mulher é essa?

S: Você disse que a arte surgiu para você a partir de um lugar de silenciamento na infância, e hoje você tem uma filha. Como você enxerga a arte enquanto esse papel, não só de educação mas também de libertação para a criança?
Z: Eu a vejo como uma peça chave. E eu gostaria muito que a arte fosse mais praticada e reconhecida nos espaços da educação. Não só em espaços específicos de cultura, não só na responsabilização dos pais, por levar as crianças para esses espaços para ter acesso. A cultura primeiro vem dentro de casa, assim como a própria educação. Então, a gente já tá sendo obrigado nessa quarentena a educar os nossos filhos. Está sendo um processo bom os pais começarem a assumir, né? Se responsabilizar pela educação dos seus filhos, porque  desde que os pais começaram a trabalhar, fora de suas casas e deixar os seus filhos nas escolas, passaram essa responsabilidade da educação aos professores. E nenhum professor é pai e mãe. Dentro de casa tem que se exercitar a prática da cultura, nos espaços culturais também é necessário. Dentro das escolas, principalmente. Porque nas escolas é onde nossos filhos passam a maior parte do dia. Os próprios professores merecem ter mais liberdade de exercer sua função com leveza, com responsabilidade, mas também com leveza, porque os educadores são seres humanos. Nesse momento, eles também estão sofrendo muito em suas casas por não conseguirem atender as expectativas dos seus alunos, por não conseguirem atingir as expectativas do governo. O acalanto para nossas aflições, crianças e adultos, nesses processos, é a arte, justamente aquela moeda que ninguém dá valor, tido como ouro de tolo, mas que se sabe que existe e que tem valor. 

S: De que forma o seu livro pode contribuir para o fortalecimento de narrativas voltadas à nossa cultura brasileira e à vida da população negra? 
Z: É uma literatura que fala do processo de mudança constante, porque ele é cíclico. Então, é um Rio Vermelho que vai ter continuação, é um rio muito fluido. Essas várias personas em fases diferentes mostram também que a cultura brasileira, a cultura afro-brasileira consegue ser a real transformação. Uma das palavras que tenho para falar do que crio é “afroconceitual”. Eu coloco nos meus textos, nas minhas hashtags, nas minhas criações, sempre coloco um “afro” na frente. Tenho essa palavra pra mim como minha. O livro fala do ser feminino, da transformação e da junção de dois povos: do eu masculino e do eu feminino. Minha filha é adolescente, faço esse exercício com ela, de pegar e ler os livros, as poesias. Digo a ela: leia mulheres negras, você é uma mulher negra. Passo referências negras, porque eu sei que na escola ela não vai ter acesso a essas referências, a educação ainda está dentro de uma escritura totalmente eurocentrada, né? Espelhada numa educação que não é nossa. Temos uma cultura que nós mesmos não nos apropriamos dela. A gente se espelha em povos para se reconhecer enquanto cultura, porque somos um país que foi dominado. Não foi descoberto, é um país que foi explorado, invadido, ele sofreu ação de invasão, agredido. Então, é esse processo que a gente passa até hoje nos nossos corpos. Corpos indígenas e corpos negros, como também corpos dos nordestinos e todos aqueles que foram tidos como trabalhadores.

S: Sobre o financiamento coletivo, por que optou por essa via de publicação?
Z: Antes, tentei de outras formas, outros projetos para o financiamento, mas não fui contemplada. Acredito que a gente faz as coisas acontecerem com várias mãos juntas. Então, eu quero receber esse axé, realizar esse sonho que não é um sonho só meu, é de outras tantas que vieram antes e outras tantas como a minha filha, que vão dar continuidade a esse Rio Vermelho. Então, eu realmente estou convocando a energia de todas as pessoas que acreditam na arte de uma mulher negra, periférica, cantadeira, letrista, mãe solo e livreGBT, que acreditam nesse poder de transformação do nosso povo. Quando a gente recebe um não, muitas vezes esse não nos afeta, mas o não não pode paralisar. Ele pode ser transformado num sim pra você mesmo: esse caminho não é, mas eu posso tentar por outro. Eu vi o caminho da campanha nesse momento coletivo, como um caminho possível no agora, mas eu continuo buscando outros caminhos, como um patrocinador, de repente, que se interesse em financiar a produção desse livro. Já agradeço esses caminhos que estão se abrindo. Espero chegar nos ouvidos da mãe de família, da dona de casa, às vezes aquela mulher que é dona de casa, ou que é uma empregada doméstica, também é poetisa. Ela pode estar com um monte de coisa escrita também e se espelhar nesse processo. Aí já vai espelhar uma outra pessoa a realizar um sonho, um objetivo.

S: Que importância você vê em passar à frente essa visão de uma possibilidade?
Z: Nós enquanto população negra sempre sobrevivemos. A gente luta, luta pra viver e a gente sobrevive e resiste nesse processo. São duas palavras que a gente quer deixar de lado, para passar a usar outras palavras. Mas enquanto for necessário, enquanto a sociedade for o que é e não passar pelo seu processo de renovação, a gente ainda vai se manter nesse patamar de usar essas palavras. É o que nos representa. Eu espero que um dia deixe de representar. E um dos caminhos para que elas deixem de representar é esse, é acreditar no sonho e fazer, realizar no aqui, agora. Chamar outras pessoas. Com certeza, publicando esse livro, vendo que uma outra pessoa também está passando por um processo e eu posso ajudar, eu vou ajudar. Mesmo quando não posso, eu ajudo, porque eu aprendi isso aqui na periferia. De um ajudar o outro, a sua vizinha está precisando de um arroz, de um feijão, você tem, você vai e ajuda. É sobre isso, a gente tem um sistema financeiro de autossustentabilidade que é rico. A quebrada não morre, pode tá tendo a guerra que for, mas se a gente for perceber, a quebrada é o quilombo de antigamente, e os nossos quilombos se espalharam.

Muito se engana quem explorou o nosso país, quem se veste ainda atualmente como burguesia. Muito se engana quem matou, quem acha que acabou com os quilombos, quem fechou as cadeias da academia e nos mostrou o caminho da cadeia, da cadeia mesmo. Muito se enganam aqueles que acham que todos os negros vão seguir esse caminho. Não, a gente não vai. Simplesmente não vai. O quilombo se espalhou. Acabaram com alguns quilombos, o quilombo não morreu. Tem várias periferias espalhadas muito maiores do que os quilombos de antigamente. A periferia, a quebrada, é o quilombo de resistência. É lá que eu quero chegar. E eu quero que essas pessoas, como eu, sejam reconhecidas porque merecem. Então é sobre esse processo, eu acredito nessa campanha e eu tenho certeza que outras pessoas também. Tenho meninos aqui da Zona Sul que têm uma empresa de design que toparam entrar nessa campanha. Tenho o apoio da Carola, que vem agregando com essa parte de produção, assessoria de imprensa, orientação. Vem aparecendo essas pessoas que acreditam, sejam pessoas negras ou não negras. Se uma pessoa branca acredita no seu trabalho e está estendendo a mão, é um caminho, pois vá, porque é uma pessoa, é um ser humano. Não existe racismo reverso, mas a gente não pode deixar que o racismo adoeça a nossa população. Como eu disse no começo da conversa, nós enquanto população negra não aprendemos a exercitar a prática do amor. Precisamos rever o amor-cura, ele tem suas duas faces, como tudo na vida, mas o amor é um caminho de cura. É esse amor que prevalece. Nós estamos reaprendendo e esse reaprendizado é o exercício na prática. É você dar a mão pra quem te estende a mão e subir, depois estender a sua e levantar outra pessoa.