Revista Sobrado

Acervo da Laje, único museu do subúrbio ferroviário de Salvador, completa 10 anos

Subúrbio.
Substantivo masculino. Conjunto das aglomerações que cercam um centro urbano e participam de sua existência.

Ferroviário.
Adjetivo. Relativo, pertencente ou próprio da ferrovia.

Museu.
Substantivo masculino. Instituição dedicada a buscar, conservar, estudar e expor objetos de interesse duradouro ou de valor artístico, histórico etc.

O subúrbio ferroviário de Salvador é casa de muita gente. Abriga cerca de 340 mil moradores, segundo o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2010). É terra do primeiro poço de petróleo encontrado no país, lá em 1939; de belezas naturais praianas; de um sistema de transporte ferroviário que atende a população por 13 quilômetros da Calçada até Paripe.

Mas também é espaço de memória, registros e resistência. O bairro de São João do Cabrito é lar do Acervo da Laje, o único museu do subúrbio de Salvador, que conta histórias através de achados pela região.

A iniciativa foi de José Eduardo, de 45 anos, pedagogo formado pela Universidade Católica de Salvador (Ucsal), mestre em Psicologia na Ufba e doutor em saúde pública, e de Vilma, 55 anos, também pedagoga e professora primária, que moram no subúrbio desde sempre. José me conta que em 2010 fez uma pesquisa sobre o trabalho invisível dos moradores da periferia de Salvador, ao lado do fotógrafo Marco Iluminati. “Quando terminei o doutorado, o professor pediu para que eu estudasse a beleza do subúrbio, porque até então ninguém tinha estudado. E aí a gente se deu conta da presença desses artistas no subúrbio, e ninguém tinha a materialidade da obra”, diz.

José Eduardo e Vilma, criadores do Acervo da Laje | Foto: Reprodução / João Luiz / G1 BA

Foi então que o casal começou a comprar esculturas, máscaras e outros artefatos produzidos por artistas que moravam na região, como Rai Bahia, e levava para a casa deles na Nova Esperança. “Essa laje que a gente morava começou a ficar carregada de obras de artes e artefatos de memória do bairro e do território do subúrbio ferroviário. Em 2011 as pessoas já estavam visitando o espaço, e eu dei uma entrevista em que a repórter perguntou o que estava se tornando a laje, e eu falei “aqui está o Acervo da Laje”, e cravou o nome”, relembra José. Conchas, tijolos antigos, pregos da ferrovia, placas de ônibus e de rua também fazem parte do acervo.

A partir daí, o acúmulo de produtos artísticos não era mais para decorar a casa do casal, mas sim para mostrar a riqueza de trabalhos feitos nas adjacências da moradia. A quantidade de obras permitiu que acontecesse uma primeira exposição pública no São João do Cabrito, que abriu portas e olhos para dar continuidade ao trabalho. “A segunda exposição foi a Águas Suburbanas, no Centro Cultural Plataforma, e aí o acervo começou a ser visitado por muita gente, por moradores, escolas, universidades. Participamos da Terceira Bienal da Bahia, em 2014, quando o acervo ficou aberto diariamente. Ali começou a ter uma certa visibilidade”, conta. “A gente não tinha dimensão de que ia chegar nesse nível, acho que isso é importante dizer. Acho que a gente aprendeu a fazer fazendo. Quando a gente viu, a gente já estava com uma memória material do subúrbio”, confessa o pedagogo. 

José Eduardo e Vilma viram o projeto dar certo, e o próximo passo foi a construção de um espaço maior para abrigar as obras e receber novas pessoas. Chamada de Casa 2, o ambiente de três andares é, além de lar da família, espaço para realização de atividades voltadas para turistas e para a comunidade. O espaço também é cenário do programa Periferia de Sucesso, da TV Kirimurê, apresentado por Fabrício Cumming.

Espaço onde acontecem bate-papos na Casa 2 do Acervo da Laje | Foto: Arquivo pessoal

“É um lugar para realizar bate-papos, oficinas, encontros, cursos. É uma casa de frente para o mar, de frente para a ponte São João, projetada pelo Federico Calabrese. A própria construção da casa se deu a partir do aterramento da nossa rua, e aí a gente começou a coletar azulejo, porcelana que vinham dos aterros para compor as escadas e mosaicos, que é uma casa de memória”, relembra José.

Ele acredita que mais de 4 mil peças compõem os dois espaços, e a última que chega é sempre a mais especial. “A última obra que chegou foi uma Iemanjá que jogaram no lixo, e no meio de uma live nos avisaram que ela estava lá jogada. Então, para nós, é importante essa memória. A gente foi começando a entender que, cada vez que as pessoas iam visitar e se reconheciam nas obras, a gente começou a ter dimensão da importância do que é ter um acervo que nunca foi visto pelas belezas ou pelas histórias”, relata.

Escadaria enfeitada com azulejos encontrados por José e Vilma | Foto: Reprodução / João Luiz / G1 BA

Reconhecimento
A Casa 2 agora passa por um processo de reforma e restauração, bancado com recursos do Fundo Internacional de Ajuda do Ministério Alemão das Relações Exteriores da República Federal da Alemanha, do Goethe de Salvador. José explica que estão trabalhando para melhorar as dependências da biblioteca visando uma futura catalogação. “O acervo digital é um projeto que busca colocar nas redes sociais, através de um site, algumas obras – porque a coleção é muito grande -, então vai demandar muito tempo. Mas a ideia do acervo digital é que as pessoas vão ter acesso às obras, vão poder conhecer todas que existem aqui”, afirma.

Por não cobrarem pela visitação, o casal banca financeiramente ambas as casas. “Ano passado a gente começou a iniciativa do ‘pague o quanto puder’ para os estrangeiros, que era uma contribuição para ajudar nas despesas, então foi ajudando a gente a se manter”, assume José.

Arte na parede do museu | Foto: Arquivo pessoal

O pedagogo ainda conta que a única dificuldade de administrar o museu é a falta de espaço, por querer guardar mais peças lá. “As famílias são muito envolvidas para nos ajudar, para dar suporte. E as pessoas da comunidade. Quando a gente ganha um projeto como o Ocupa Lajes, a gente chama as pessoas da comunidade para trabalhar, chama os artistas, porque a ideia é isso, a cultura faz movimentar essas famílias, as pessoas que colaboram conosco tanto voluntariamente, quanto quando tem a possibilidade de remuneração”.

José também ressalta que, desde 2010, ano em que iniciaram o acervo, a mídia começou a olhar para as belezas e trabalhos do subúrbio. “Isso se deve a uma grande quantidade de pessoas e instituições que trabalham aqui, como o Centro Cultural Plataforma, Escola Comunitária Nossa Senhora da Escada, o espaço Boca de Brasa”, cita.. 

Editais e eventos
Por estar inserido na comunidade acadêmica, o casal buscou participar de eventos culturais para elevar a voz e a visibilidade das casas. E por não terem nenhum financiador fixo, o único momento que o Acervo da Laje recebe incentivo financeiro é se inscrevendo nos editais.

Banner do projeto Ocupa Lajes, realizado nas dependências do Acervo | Foto: Reprodução / João Luiz / G1 BA

“Em 2016 a gente ganhou nosso primeiro edital público, o Arte em Toda Parte, realizado pela Prefeitura de Salvador, em que fizemos o projeto Ocupa Lajes, com a participação do produtor cultural Leandro Souza. Fizemos oficinas de arte, exposições, intervenções visuais aqui nos bairros do subúrbio”, informa José. Dois anos depois, o projeto ganhou o segundo edital da Secretaria de Cultura, a Secult, para expandir o Ocupa Lajes para Itapuã, Alagados, Plataforma e Engenho Velho de Brotas.

O Acervo da Laje também foi o único representante do Nordeste no documentário BRASIL CRIATIVO.DOC, lançado no último dia 8. A produção apresentou a trajetória de doze empreendedores e negócios vencedores da terceira edição do Prêmio Brasil Criativo, a premiação oficial da Economia Criativa brasileira.

Trabalho durante a pandemia
Por causa da pandemia do novo coronavírus, que deixou Salvador em quarentena por quase seis meses, as casas que compõem o Acervo da Laje ficaram privadas de visitação pública, inclusive de comemorar os 10 anos do museu. A solução, então, foi de aderir ao sucesso das lives, que dominaram as redes sociais assim que foi decretado o isolamento social.

“Começamos a apresentar as obras e livros do acervo através do Instagram. Depois começamos algumas lives chamadas de Lives da Resistência, porque a internet falhava sempre. Tem um grupo de pessoas que é bem constante nas lives. Aí surgiu a seção Livros da Live, que falam da história da Bahia, da cultura negra, pra gente mostrar essa documentação e o acervo que foi construído nos últimos dez anos, que a gente considera importante”, ressalta José.

Outros projetos socioculturais de Salvador e do resto do país procuraram o Acervo para bate-papos ao vivo, como a colaboração com o mediador Natureza França, do A Corda Samba de Roda. “Depois começamos também a receber convites de outros Estados como São Paulo e Rio de Janeiro para participar de eventos, conversar com universidades, espaços museais, curadores e curadoras. Então esse período está sendo muito forte pra gente pra estabelecer outros vínculos com outras pessoas, outras instituições”, conclui o garimpeiro de memórias do subúrbio ferroviário de Salvador.

A previsão de retomada das atividades do Acervo da Laje, no entanto, ainda é incerta, mas José e Vilma garantem que ano que vem as casas estarão abertas para contar as histórias deste pedaço de Salvador, qual precisamos olhar com mais atenção.