Revista Sobrado
Fotos: Arquivo pessoal / Divulgação

Cinema de Tuna: a irreverente história do diretor baiano

Entre os rolos de filme do cinema nacional, a Bahia ganhou destaque das últimas décadas. Na cadeira de direção, um homem chamado Tuna Espinheira se encarregava de comandar a equipe no set, e, muitas vezes, o próprio fazia a pós-produção. O preto e branco da cena documental brilhou e ganhou as cores das fitas do axé graças ao seu talento e sensibilidade.

José Antonio D’Andrea Espinheira, que adotou o nome Tuna Espinheira, nasceu na capital e aos dois anos de idade foi viver com a família na cidade de Poções. Ainda criança, frequentava os cinemas da cidade, despertando, assim, o interesse pelas telonas. Em 1966, trabalhou em um jornal em São Paulo, evoluindo a habilidade de escrita principalmente na criação de seus roteiros, textos e artigos opinativos.

O sonho de estudar cinema de verdade veio dois anos depois, em 1968, no Rio de Janeiro, cidade do polo cinematográfico brasileiro, para montagem e edição dos filmes. Foi no berço carioca que Tuna dirigiu seu primeiro documentário, Luiz Gonzaga: o Rei do Baião. Atuou como assistente de produção e ator em 69, e em 1971 dirigiu seu segundo filme, desta vez sobre a baiana Major Cosme de Farias.

Produziu mais algumas películas e, em 1972, no festivo 2 de fevereiro, conheceu Yara, que se tornou, além de esposa, parceira de produção. Depois de muitos filmes, reconhecimento e prêmios, Tuna veio a falecer em 2015.

Para Yara, o diretor sempre manteve sua relação profunda e de comprometimento com o cinema. “Ele nunca se afastou do fazer cinema. Foi uma vida inteira dedicada. O fato de trabalhar com o companheiro com muita admiração só me fez crescer sobretudo como ser humano. A maior qualidade de Tuna como diretor é a calma, o equilíbrio e o interesse dele pela literatura que sempre somou muito nas suas obras”, revela.

Yara e Tuna Espinheira

Cinema de Tuna
De tanto que fez pelo cinema baiano, este mês ganhou um site só seu, para contar histórias para a nova geração de amantes das produções locais. Idealizado por Rosa e Yara Espinheira, filha e esposa do diretor, respectivamente, o Cinema de Tuna reúne sua biografia e linha do tempo com toda filmografia organizada e detalhada.

“O cinema de meu pai tem que ser visto e alcançar as novas gerações. Muitos estudantes e curiosos sempre nos procuram para conhecer as obras, com o Cinema de Tuna vamos facilitar em uma plataforma um pouco de Tuna e da obra dele que sempre se entrelaçaram entre sua vida e sua obra. É necessária essa continuidade, é o maior plano sequência do nosso amor e do legado da memória dele”, destaca Maria Rosa, que viu seu pai trabalhar passionalmente no ramo que hoje ela está.

Tuna e sua filha Rosa

No menu do site, o documentário A Mulher Marginalizada (1989) ganhou destaque. A produção de mais de 30 minutos mostra a história estigmatizada de prostitutas que viviam na Comunidade do Maciel, em Juazeiro. Depoimentos, entrevistas e imagens de seu cotidiano, além do trabalho realizado pela Pastoral da Mulher Marginalizada, desenvolvido pela ala progressista da Igreja Católica, construíram o curta-metragem que demorou dois anos para ser concluído. Rendeu prêmios como o de Melhor Direção e Melhor Filme no VI Rio Cine Festival, além do Troféu de Ofício Católico Internacional de Cinema (OCIC).

“Eu sou apaixonada por esse filme. É de uma potência e de uma força absurda. Acredito que seja o grande momento de meu pai como documentarista. É um filme rock ‘n roll e de um respeito inenarrável com a mulher. Foge de qualquer estigma para falar com as prostitutas. Yara e Tuna, os meus pais, entram na vida delas com um carinho e ainda tem o trabalho da igreja que é genial. Que coisa! Os prêmios são apenas uma resposta a verdade que essa obra representa”, exalta a atriz.

Comunidade do Maciel
Outro curta importantíssimo na carreira de Tuna Espinheira foi sobre a Comunidade do Maciel, no Pelourinho. Produzido em 1973, o filme expunha a realidade nua e crua da comunidade, que foi alvo do programa de revitalização proposto pelo Governo do Estado. Mas, em pleno período da Ditadura Militar, o esperado aconteceu: a produção sofreu perseguição do Estado, e o Departamento de Censura da Polícia Federal alegou a presença de “caracteres negativistas”.

“Quando o filme foi participar de um festival, informaram a Tuna que, se ele não retirasse o filme, ele iria preso. Tuna teve que retirar o filme do festival e também foi convocado para depor por mais de quatro horas. Foi perseguido sem parar no período da ditadura. Inclusive Tuna não quis que o seu pai, Dr. Ruy, soubesse dessa situação”, relembra Yara. Porém, apesar disso, o curta foi exibido no festival de Obenhausen, na Alemanha, e convidado hons concours para o Festival de Nyon, na Suíça.

A perseguição por causa do documentário fez o casal se autoexilar em Paris, na França, por um ano. No retorno ao Brasil, o diretor participou de curso de roteiros patrocinado pela Prefeitura de Salvador.

Tuna nas filmagens de Bahia de todos os Exus

Outras obras
Tuna mergulhou seu talento na construção de muitos outros filmes. Deu destaque ao Candomblé no curta-metragem antropológico Bahia de todos os Exus (1978); contou a história do advogado brasileiro Heráclito Sobral Pinto em 1979; se inspirou na biografia do poeta baiano Anísio Melhor e fez seu primeiro curta de ficção, O cisne também morre (1983). Já em A seca verde (1985) ressaltou as condições de vida no sertão baiano, e em 1997, lançou o documentário sobre a festa do 2 de Julho.

Em 2004, Tuna lançou seu primeiro longa-metragem de ficção, Cascalho, baseado em romance homônimo do escritor baiano Herberto Salles. Cinco anos depois liberou um documentário sobre o artista plástico Leonel Mattos. Em 2011 foi homenageado na I Mostra Cinema de Poções, cidade onde viveu na infância.

O último filme dirigido por Tuna foi um longa-metragem sobre Juracy Dórea, artista plástico de Feira de Santana, em 2014. Algumas das obras de Tuna Espinheira estarão disponíveis no site para acesso do público.