Revista Sobrado
Foto: Diogo Andrade / Divulgação

A Pombagem: as forças desarmadas da população

É Dois de Julho em Salvador. No Pavilhão da Lapinha, duas personagens se preparam para entrar em cena: o Caboclo e a Cabocla, protagonistas da festa máxima do povo baiano, imagens dos guerreiros que, em 1823, conquistaram a nossa independência frente às tropas portuguesas.

A ação se inicia: o cortejo parte do Largo da Lapinha e oferece flores ao busto do General Labatut, militar francês que ajudou na organização dos combatentes brasileiros contra os ataques de Portugal. Depois, as figuras, acompanhadas pela multidão baiana, passam pelo Largo da Soledade, onde se encontra o monumento à guerreira da independência Maria Quitéria, e seguem pelo Pelourinho rumo à Avenida Sete de Setembro e, então, ao monumento ao Caboclo, no Campo Grande. A encenação acontece na capital baiana há quase 200 anos, mas não pôde ser realizada em 2020 por conta das restrições impostas pelo novo coronavírus. Este ano, ao que tudo indica, a impossibilidade se repetirá.

O desfile cívico que homenageia a independência baiana é fonte inspiradora da poética e da linguagem teatral do Grupo de Arte Popular A Pombagem. Atuantes na cidade de Salvador, sobretudo em bairros da periferia, desde 2009, o coletivo combina o teatro de rua à educação patrimonial e à valorização da memória.

Seu mais recente projeto é o audiovisual O Museu é a Rua, adaptação do espetáculo homônimo elaborado pelo grupo em 2018, e contemplado pela Lei Aldir Blanc. A iniciativa é uma possibilidade de ação em meio à pandemia, na qual o grupo, assim como os outros artistas de rua da cidade, encontra restrições ao exercício de seu ofício, que é por definição entrelaçado ao espaço público. Ao mesmo tempo, participam das lutas políticas, organizacionais e simbólicas frente ao desamparo e às privações de um projeto de governo aniquilador da cultura e do povo.

Para a artista Meri Araújo, o projeto representou uma forma totalmente nova de encenar, uma vez que a ambientação e o caráter da presença do outro são essenciais para o teatro de rua. “O contato é importante, principalmente os aplausos, o calor humano. As pessoas passando pelas imagens [fotografias dispostas em cavaletes pelo grupo, como numa instalação], observando, perguntando. O artista de rua sente falta da rua”, comenta.

No espetáculo virtual, os pombos e pombas, como se denominam os artistas do coletivo, convocam à cena personalidades ilustres de nossa história, cujos monumentos se encontram em locais de grande fluxo de pessoas na cidade, mas que nem sempre são reparados em sua totalidade.

O poeta Catulo da Paixão Cearense, cujo monumento se encontra na Praça dos Trovadores, no bairro da Fazenda Grande do Retiro, as heroínas do Dois de Julho representadas pela imagem de Maria Quitéria na Ladeira da Soledade, os guerreiros da independência representados pelo General Labatut (Lapinha) e o advogado, jornalista e poeta baiano Luís Gama, cujo busto encontra-se no Largo do Tanque, são pontos de partida para o diálogo proposto pelo grupo, que questiona o museu tradicional, a noção de beleza e defende a arte disponível nas ruas enquanto arte pública. 

“[Luís Gama] é um poeta da Bahia e de Salvador, e muito representativo da periferia negra. Então, como apresentar um espetáculo de teatro de rua, por exemplo, na praça do Largo do Tanque, sem olhar para esse monumento que está ali? Como se apresentar na rua sem observar os elementos que integram a cidade? Sem observar os monumentos, as praças, as pessoas que frequentam aquele lugar. Não se trata apenas das estruturas urbanas, e sim do modo como as pessoas, as mais diversas, se apropriam desse espaço e o transformam em lugar. O transformam em território, em lugar-significado”, explica Fabrício Brito, diretor artístico do grupo e um dos fundadores. Apresentado durante o mês de abril, O Museu é a Rua encontra-se disponível na página oficial do projeto no Facebook.

Junto às quatro apresentações, o coletivo também realizou bate-papos ao vivo com artistas e coletivos de outras partes do Brasil, que podem ser assistidos na página do Instagram d’A Pombagem. Fabrício ressalta a importância do contato com artistas de outras partes do país para o fortalecimento do Grupo e do cenário baiano. Em 2019, à frente da coordenação do Movimento de Teatro de Rua da Bahia (MTR-BA), entidade que visa a articulação dos interesses desses artistas em Salvador e no interior, Fabrício organizou o vigésimo segundo encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR), em Salvador, local de nascimento da Rede em 2007.

“As pessoas que estiveram aqui no encontro de 2019 nos deram muito fôlego, mostraram que é possível lutar, disseram assim: ‘a Bahia não está só, pode contar com a gente’. O pessoal do Acre chegou para nós com muita força. O pessoal de Alagoas também. Então, essa ideia de rede, quer dizer, de uma Bahia que não está só, mas está apoiada pelos quatro cantos do Brasil, fez com que a gente se sentisse mais forte e acreditasse numa outra possibilidade”, conta.

Foto: Diogo Andrade / Divulgação

Primeiros vôos
A Pombagem representa para a Bahia a corporificação da história e da tradição do teatro de rua brasileiro. Em nossa terra, a prática é indissociável da cultura popular e carrega as marcas das encenações urbanas que protestavam contra o regime autoritário da ditadura. De forma análoga a outros grupos importantes como o sergipano Imbuaça, que se enlaça à tradição do cordel, e o Tá Na Rua, do Rio de Janeiro, que encarna a estética do Carnaval, é a poética da festa popular do Dois de Julho que inspira os pombos e pombas.

“Com a chegada da modernidade, na divisão dos espaços, o espaço público se tornou um lugar de passagem, um não-lugar, de maneira que até para se criar um espetáculo de teatro de rua você tem que ser subversivo porque a rua não é para estarmos ali criando significados. Se torna uma ameaça, porque a rua sempre foi um espaço de organização política, de fazer essas trocas”, observa a pomba Manuela Ribeiro.

“A gente acredita que a ocupação cultural do espaço público é uma forma de recuperar a sua dimensão política. De fazer com que a gente se conecte para pensar juntos um modelo melhorado de sociedade. Tudo que o sistema capitalista, opressor, quer, é que a gente não veja o potencial das ruas”, completa o diretor.

Mas mesmo antes de se firmar na pesquisa de uma identidade estética que costura o teatro de rua ao monumento público, o entendimento do espaço público enquanto lugar de arte e promotor deste diálogo em prol de um modelo social mais justo, plural e democrático já se fazia presente nos artistas fundadores. Tudo começou há quase doze anos, na Fazenda Grande do Retiro e em São Caetano, na periferia da capital baiana, entre três amigos moradores desses bairros: Fabrício, Patric Adler e Uilton Oliveira, unidos pela poesia e pela arte do pixo. “Escrever [na cidade] era reivindicar nossa existência”, define Fabrício. 

Nas idas e vindas dos jovens artistas, que declamavam suas poesias autorais e distribuíam livretos, o olhar e discurso ofensivo por parte de moradores de áreas nobres da cidade foi ressignificado em uma identidade. “Éramos chamados de pombos sujos”, lembra Fabrício. A partir dessa imagem do pombo, A Pombagem surge como um projeto artístico que demarca a luta das artes marginais. “[O pombo] vive à margem da sociedade. Vive ali, mas você evita. Quem dá as migalhas para ele são as pessoas das ruas. Aquelas pessoas que vivem nas ruas. Pegam um pedaço de pão, dão as migalhas. Então, o nome traz essa questão dos artistas marginais”, observa a pomba Milica San.

Inicialmente voltados à divulgação da poesia periférica na cidade, realizando saraus, com o passar do tempo e o pouso de novos integrantes, os artistas foram expandindo a espetacularidade teatral da declamação. A primeira peça surgida de uma poesia foi É O Fim das Gargalhadas, de Fabrício e Patric, que trata do uso abusivo de drogas, em especial o crack, abordando também a vida das pessoas em situação de rua e a segurança pública.

Em uma sociedade racializada como a nossa, sabemos que esses temas são entrecortados pelo racismo. “Era também um grito do povo negro, um grito da periferia dizendo: ‘não se trata de guerra às drogas, a guerra é contra o povo negro’”, observa Fabrício.

O assunto também aparece explícito no espetáculo Pedro Bala entre a Pedra e a Bala, no qual, a partir de uma releitura do personagem amadiano Pedro Bala representado pela Pombagem como um menino preto e da periferia, o grupo se debruça sobre a Chacina do Cabula, assassinato de doze jovens negros no bairro do Cabula em 2015, em ação da Polícia Militar baiana. O espetáculo estabelece um diálogo entre esse massacre e o da Candelária, de 1993, no qual oito jovens em situação de rua foram assassinados durante a noite nas proximidades da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro.

O recente massacre na favela do Jacarezinho, também no Rio de Janeiro, por parte de uma operação da Polícia Civil do Rio, que vitimou 28 pessoas no início deste mês de maio em plena pandemia, relembra a infeliz urgência em discutir o tema em todas as esferas da sociedade. Com Pedro Bala, o Grupo utilizou a técnica do teatro-fórum proposta por Augusto Boal, no qual a ação se finda antes do desfecho narrativo do espetáculo e os espect-atores (noção do teatrólogo brasileiro alçada pela dissolução da dicotomia artista-público) são convocados a participar da cena.

“Empeitamos esse debate desde o início e  nunca deixamos de pautar as questões raciais em nossos espetáculos, ao contrário, a gente faz questão de tornar esse tema central”, completa Fabrício. Não poderia ser diferente: hoje, o coletivo é formado quase em totalidade por pessoas negras e, em sua maioria, por mulheres. São, segundo o diretor, “entre 17 e 33” membros – os vôos das pombas e pombos são flutuantes, mas, como disse a pomba Juliana Fonseca, o grupo se sente alegre e fortalecido a cada vez que alguém se une. “A gente nunca sabe ao certo a quantidade de pombos que se achegam. É sempre um momento de fortalecimento, é uma característica que acho que todo mundo sente”, comenta.

Foto: Hércules Bressy / Divulgação

Corpos em cena, monumentos vivos
A conversa entre as artes plásticas dispostas nas praças da cidade e a arte efêmera do teatro de rua, defendida enquanto arte pública – discussão presente na ação do grupo e também nos estudos da área dos teatros de rua – transforma o corpo dos atuantes também em produtos artísticos. Nos corpos das atrizes d’A Pombagem, as guerreiras da independência baiana, por exemplo, se presentificam e suas histórias se dispõem a quem estiver passando.

“A gente percebeu que o museu é vivo, as pessoas têm que fazer parte do museu o tempo inteiro. Não apenas sendo espectadores de um objeto, uma fotografia, uma representação, ou passantes, pessoas que não tocam, não falam, malmente respiram. A nossa ideia é que as pessoas toquem nos monumentos, sintam, sejam, interajam, construam”, diz Juliana. Essa pesquisa de linguagem envolvendo memória e patrimônio teve início em 2016, quando Manuela, que é museóloga, compartilhou com o grupo o seu tema de estudo.

Milica San comenta como a história das guerreiras, muitas vezes apagadas na historiografia tradicional, se encontra com a vivência das próprias mulheres artistas de rua. “A diferença de um homem entrar num busu para fazer arte é gritante em relação à mulher. A gente sofre o assédio, um certo desrespeito que não tem com o homem. Um certo tom de agressividade. Como essas mulheres que representavam, independentemente desses bloqueios, dessas perseguições, nós também nos vemos assim, não só a Pombagem mas todas as artistas de rua, seja do busu, palhaçaria, sinaleira, nós lutamos por esse espaço”, relata.

Em O Museu é a Rua, ela interpreta uma personagem carinhosamente apelidada de Estátua Enigmática, figura que se imobiliza na posição da guerreira e, repleta de interrogações por todo o seu corpo, questiona: o que é o museu? Para quem estão dispostas as obras tradicionais? E uma das questões mais profundas da humanidade: o que é a arte?

Luana Gomes, também artista do grupo, vê na encenação uma oportunidade de questionar a representação das mulheres: “O espetáculo toca na história de Maria Felipa, por exemplo, que se diz que ela e as mulheres tiveram que seduzir os homens, mas não foi bem assim, não foi só isso, teve lutas, não físicas, mas por meio da inteligência dela. Infelizmente, se passa adiante a história da sedução. Como se nós mulheres só tivéssemos uma característica de seduzir os homens”, aponta.

Atriz que interpreta a personagem da Musa da Guiné em O Museu é a Rua, Janete Brito concorda, e observa a escolha de representar a memória do povo africano da diáspora. “É uma forma de romper com a imagem construída pela cultura branca e burguesa, que coloca o povo preto em lugar de subalternidade, de inferioridade. Dar vida a essas personagens e narrativas é fundamental, pois essas referências nos inspiram a continuar a luta. É uma maneira de reivindicar o nosso olhar sobre o mundo, a nossa visão de mundo e a nossa cultura”, afirma. A Musa da Guiné é a musa inspiradora da obra poética de Luís Gama, resgatada pela Pombagem como uma contraproposta às musas gregas que dão origem etimológica à palavra museu (“morada das musas”).

Para além da subjugação machista, por outro lado, Milica comenta como o espaço da rua proporciona também uma experiência de identificação e empatia do público passante.  “Acredito que quem está ali naquele momento se reconhece. Por mais que ela não fale, a gente vê que sente. No ônibus, isso é muito mais real porque está muito próximo. Então, sentimos uma troca de vivências, uma empatia, mesmo sem o outro dizer. Aquela pessoa que está ali, assistindo, em sua maioria também é jovem, preto, periférico, mulher”, observa a poetisa. 

Foto: Diogo Andrade / Divulgação

 “A rua é o museu do povo”
Emblemática, há uma canção entoada pela trupe que diz “Ô sociedade/ Por que ocês não aceita a arte/ Que pulsa nas vielas/ Nas ruas das favelas?”. A pergunta traz à baila novamente a subalternização das artes periféricas (a criminalização do pixo é simbólica nesse sentido) e também faz pensar na disposição dos equipamentos culturais (e esportivos) em nossa cidade. Fabrício afirma que a proposta cultural do grupo está ligada a uma tríade de “museu sem edifício, acervo sem coleção e visitação sem público”.

Ao final das entrevistas, questionei alguns artistas sobre o significado que lhes provocavam as palavras “arte popular” e “artista”. As respostas, das mais diversas, simbolizam a força do sentimento de comunidade que permeia o projeto. Para Luana, a arte popular é uma “arte clara, que é bem fácil de entender, não está restrita a uma sala fechada, e que se pode sentir, tocar, entrar naquela vibração”. Já Milica, para quem o artista é “um receptor, que se deixou abrir para a mensagem da arte”, considera que a fundamental característica da arte popular é quem a produz e quem dela frui – “aquilo que a gente faz para nós e para nossos irmãos. É acabar de fazer uma cena e sentar numa roda e poder dialogar sobre aquilo”. Para Juliana, é um algo que “está acontecendo, não que vai acontecer”.

O pombo Davi Mariston ressoa o pensamento das colegas e afirma: “A arte popular é uma forma de se rebelar, ou se revelar, ambas as palavras no fundo são a mesma coisa. Quem se rebela, se revela. Quem se revela, se rebela. Ao mesmo tempo enfrentando aos descasos, as coisas que estão aí alimentadas pela ignorância, pela maldade, e se construindo, com a autopercepção e o reconhecimento”. 

Certa vez, li uma frase do diretor Amir Haddad, do grupo Tá Na Rua, referindo-se ao lugar dos artistas num país marcado pela violência. Assim afirmou: “nós somos as forças desarmadas da população”. A frase ecoa em minha cabeça desde que conheci o Grupo de Arte Popular A Pombagem, que, como tantos artistas de rua, vem resistindo e enfrentando a dominação por meio da cultura, sem nunca perder de vista um senso de coletividade do qual andamos tão carentes no nosso país.

Sem receio de ferir os defensores de uma pretensa imparcialidade jornalística, sinto urgente a necessidade de que registremos cada vez mais projetos como o realizado pela Pombagem. Para além disso, esse texto termina com uma homenagem: ao artista Ramon dos Santos, apelidado de Perdido, vitimado pela violência urbana em março do ano de 2020. Ramon era jovem, negro, periférico, ator, dançarino, pernauta e músico. Era artista de rua, membro d’A Pombagem, onde também confeccionava cenários.