Revista Sobrado
Foto: Amanda Nascto / Divulgação

Segundo bar mais antigo de Salvador em exercício, o Velho Espanha resiste durante pandemia

Fundado em 1920, o Armazém Espanha foi da família Mendez Pineiro por 92 anos. Lá eram comercializados utensílios para moradores do bairro, que iam desde querosene – principal substância utilizada para a iluminação naquela época -, até o vinho e a famosa branquinha (a cachaça). Em 2012, essa tradição foi interrompida. O Sr. José Luiz Mendez Pineiro – ou simplesmente Seu Zé, como é conhecido -, herdeiro do estabelecimento, aos 80 anos de idade, decidiu fechar o bar.

Cinco anos depois, em 2017, o bar foi reinaugurado, agora sob a administração dos sócios Uiara Araújo e Arthur Daltro, que tornaram o ambiente em mais um equipamento cultural da capital baiana. O Velho Espanha Bar e Cultura tem um diálogo forte com diversas linguagens artísticas: já foi palco de performance Drag Queen, recebe eventos como o Sarau Som das Sílabas, rodas de chorinho, debates, exposição de artes visuais, shows de artistas independentes (músicos recentes na cena artística baiana e os mais experientes também), transmissão de séries e partidas de futebol. O espaço carrega no DNA a valorização pela cultura mesmo.

O interior do Velho Espanha Bar e Cultura | Foto: Amanda Nascto / Divulgação

Os cineastas Glauber Rocha – homenageado com quadros de seus filmes espalhados pelo imóvel – e André Setaro são apenas algumas das grandes personalidades que já foram clientes do bar. As paredes que carregam as homenagens são de adobe, descascadas e expostas em algumas partes, o piso vermelho de ladrilho hidráulico e o teto com a madeira de lei são todas originais e que dão um tom vintage ao ambiente.

A essência da proposta dos sócios era justamente de manter a memória do Armazém Espanha com uma valorização da produção artística e cultural local. Uiara Araújo, sócia proprietária do bar, é da cidade de Wagner, interior da Bahia, e desde o ano de 1997, quando veio para Salvador, mora nos Barris. História parecida com a do sócio Arthur Daltro, que também nasceu no interior da Bahia, Jacobina, e quando veio à Salvador no mesmo ano, passou a morar no bairro.

“O Bar do Espanha era o nosso bar favorito”, afirmam os sócios, que antes eram clientes do espaço. Uiara e Arthur fazem parte do Movimento Etílico dos Barris (MEB), uma organização de afirmação do centro da cidade, que promove o Bloco Moraes e Moreira, famoso baile de carnaval. Os integrantes dizem aos quatro cantos que “os Barris é o melhor bairro do mundo”.

Os sócios Arthur Daltro e Uiara Araújo | Foto: Arthur Luna

Para Uiara Araújo, o respeito à originalidade do bar parte muito do que se é aprendido e debatido no MEB. “A valorização ao centro da cidade está não só na parte estrutural do bar – parede, piso e teto -, mas os nomes dos pratos que são servidos fazem memória ao centro, como também um mapa cultural desse espaço da cidade pintado na parede”, ressalta.

O sócio Arthur Daltro coloca o projeto do Velho Espanha como um case de sucesso. “Uma coisa que nos deixa muito felizes é que, desde a reinauguração, a empresa sempre gozou de saúde financeira, cultural e artística. Teve o boom de bar da moda, o que nos preocupou, mas passado o primeiro ano, conseguimos manter o fluxo de clientes e hoje já são três anos de bar. Até o decreto de isolamento social, temos uma avaliação bem positiva”, comenta.

O público
Parece que o público do bar segue uma tradição. Foi assim com os sócios que já tinha uma relação afetiva com o espaço e foi assim também com a cliente Flávia Lima Freitas, servidora pública que desde pequena frequenta o bar. “Meu pai também é cliente do bar. Lá para os meus 7 ou 8 anos de idade, eu já ia encontrar com ele. Seu Zé, o antigo dono, sempre me dava um bombom. Aí eu fui crescendo e pegando meu espaço também, né?”, brinca. “Hoje, os sócios são meus amigos e o Velho Espanha passou a ser parte da minha casa, lugar onde consigo ficar de boa”, comenta.

A cliente também reforça o medo de frequentar um bar sozinha. “Eu sempre quis ir sem companhia. Tinha dificuldade porque guardava memórias do bar só de meu pai, acompanhado dos amigos quase todos homens. Não me encaixava, sabe? Tinha dificuldade também por conta de todo o contexto de violência contra a mulher num ambiente assim. Fui desconstruindo e me fortalecendo. Agora, até penso em tomar uma sozinha naquele balcão, mas é questão de pouco tempo. Chega logo alguém”, pontua.

A funcionária Fran Luz também frequentava o bar antes de ser contratada como caixa, e conta que sempre se identificou com o espaço. “Eu era cliente frequente do bar. Meu namorado mora nos Barris e somos clientes até hoje. O público do Velho Espanha tem uma energia diferenciada. A história foi assim: eu fiz amizade com um funcionário e pedi para ele me indicar, por mais que fosse freelancer. Entrei como freela e estou aqui até hoje”, comenta a colaboradora, que está afastada pelo auxílio do Governo no momento.

Ao falar da clientela, Fran afirma estar com saudades. “São clientes diversos – nas classes sociais, econômicas, orientação sexual. Como a fidelidade é bem alta, criamos uma relação e estou sentindo falta”, conta. Sobre a possibilidade de um retorno às atividades, ela pontua: “Uiara e Arthur estão avaliando e tenho certeza que será tudo com muita segurança, eles não vão expor nem os funcionários e nem os clientes”.

O cliente e jornalista Gilson Jorge, que frequentou o bar durante a época da faculdade, na década de 1990, relembra das comidas árabes e da roda de samba aos sábados. “A gente ia à Biblioteca, Espaço Xisto ou à Sala Walter da Silveira e passava para tomar uma, mas comecei a frequentar mesmo em 2015 ou 2016, quando o libanês Joseph assumiu o bar. Quando Joseph saiu e anunciaram a reforma, pensei que eu não voltaria mais. Achei que ia ser um bar da Pituba nos Barris”, comenta.

Ainda acostumado com a velha estrutura e o antigo clima do bar, Gilson conta que resistiu muito antes de virar cliente de novo. “Um dia, num boteco na mesma rua, ouvi a voz de um homem jovem que imaginei ser Arthur, porque não o conhecia ainda, explicando para outras pessoas o que queria fazer com o bar, mas não me interessei. Quando finalmente voltei em uma manhã de domingo para almoçar, adorei a decoração, o astral de Uiara e passei a frequentar assiduamente, virei mobília. Sou do tipo de cliente que, se deixarem, eu mesmo pego a cerveja na geladeira e anoto na conta”, brinca. “Tenho cultura de boteco”, admite.

Para uma pessoa que assume ter cultura de boteco, Gilson Jorge avalia: “Eu gosto da clientela. Se você não é um tapado, sabe que vai encontrar em grande parte pessoas de esquerda e que apoiam as pautas humanitárias lá, e, para mim, isso é mais aconchegante do que um serviço considerado de primeira. Eu torço muito para que o Velho Espanha atravesse bem esse período. Inclusive pretendo colaborar, mas não penso em voltar a bares antes que a situação esteja razoavelmente controlada. Rezar para que alguma vacina russa, chinesa ou outra seja eficaz e aplicada em massa”, sinaliza.

Campanha #SOSVelhoEspanha
A relação com os clientes é bem aberta, e durante a pandemia do novo coronavírus os sócios passaram a se relacionar muito mais com os clientes pelo Instagram e utilizam a rede social como um termômetro para a realidade. Por sugestão dos seguidores, uma campanha de financiamento coletivo foi criada. A meta é de R$ 21.500,00 e, segundo os sócios, esse dinheiro será para pagar o aluguel.

Entretanto, eles alertam que falta apenas uma semana para o prazo terminar, e, até o momento, alcançaram metade da meta, causando preocupação. “Foi com essa meta que a gente renegociou o pagamento do aluguel, que tem já descontos do inquilino”, ressaltam. “A gente segurou como pôde. O fluxo de caixa do bar diminuiu bastante, o delivery não respondeu tão bem quanto esperávamos e começamos a usar a reserva do bar. Há muitos meses não conseguimos pagar o aluguel e aí foi quando veio a ameaça do salário das funcionárias que estão em serviço, pois diminuímos o quadro, mas não fechamos completamente o bar”, admitem.

A contribuição é feita de dois modos: pelo financiamento coletivo online, em que todo o dinheiro arrecadado será para o pagamento do aluguel em atraso, ou por transferência direta nas contas dos bancos Caixa ou Itaú, que será para pagar atrasos em despesas fixas e trabalhistas.

Veja como contribuir com o Velho Espanha Bar e Cultura:
Link para a vaquinha virtualhttps://www.vakinha.com.br/vaquinha/sos-velho-espanha
CNPJ – 28.079.156/0001-29
CAIXA (Banco 104) – Ag. 0991 Op. 003 Conta 3498-7
Itaú (Banco 341) – Ag. 0129 Conta 48.079-4

Seguindo pela perspectiva da relação cliente e bar ser bem horizontal, nessa semana foi lançada uma enquete no perfil do bar no Intagram para saber se o público achava necessário a reabertura presencial do bar neste momento, e sobre isso, os sócios disseram: “o Velho Espanha sempre foi um projeto que se pretendeu participativo, de construção coletiva e que tem o cliente como foco. Acreditamos que um bar centenário e o segundo mais antigo de Salvador em funcionamento é um patrimônio, não podemos decidir sozinhos, resolvemos então perguntar nas redes sociais”, pontuam.

Mesmo com o decreto da Prefeitura de Salvador autorizando a bares e restaurantes funcionarem, o público optou por não abrir, os sócios tiveram receio de expor desnecessariamente funcionários, clientes e famílias. No entanto, disseram estar preparados e seguem dentro dos protocolos estabelecidos pela Prefeitura. “Resolvemos então não abrir de imediato, podendo oferecer até mais do que é exigido como protocolos de segurança, mas queríamos ouvir nosso público e mais de 90% opinou contra a reabertura presencial do bar, chancelando o que acreditamos”, explicam.

Sobre o retorno, a cliente Flávia Lima Freitas disse que “o Velho Espanha é inclusão”. “Ele vai encontrar a melhor maneira para essa retomada da forma mais segura possível. Na verdade, as ideias já estão em prática. O PF solidário é maravilhoso, a gente pôde se aproximar do bar sem a limitação do delivery, imagine aí? Essas trocas nas redes sociais, essa escuta da clientela, os tantos abraços virtuais… Ah, vai passar e estaremos com o Velho Espanha nesse processo, juntinhas”, encerra a cliente.

Por hora, o Velho Espanha segue fechado no atendimento presencial e funcionando no delivery via WhatsApp e entrega por aplicativos. A pandemia segue desestabilizando financeiramente muitos setores econômicos, principalmente o cultural, mas são mais de 100 mil vidas perdidas para o coronavírus apenas no Brasil e é importante que esse dado não seja menosprezado por uma conquista financeira de uns poucos.

Para encerrar, Uiara Araújo e Arthur Daltro acreditam que “essa pandemia apresenta a força e ao mesmo tempo o desprestígio da produção cultural. A força, pois estão todos em casa consumindo arte, e o desprestígio pois a produção teve que parar e será uma das últimas a retornar” e parafrasearam o poeta Mário Quintana “eles passarão, eu passarinho. Sigamos”, finalizam.